quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

JUSTIFICAÇÃO RACIONAL DA PENA DE MORTE, RAZÃO FUNDAMENTAL: RESTAURAÇÃO DA ORDEM JURÍDICA VIOLADA - ¨Pena de morte jᨠPe. Emílio Silva

Já vimos como a pena de morte foi adotada em todos os tempos, por todos os povos, em todos os códigos legislativos, por todos os doutores, teólogos e moralistas e por todos os grandes pensadores e estadistas que houve no mundo; e o mais decisivo para os crentes, que a pena capital não só foi permitida, senão ordenada preceitualmente pelo próprio Deus e ensinada ininterruptamente pelo Magistério ordinário da Igreja Católica. Creio que isto é mais que suficiente, não digo para um católico, que só com grande ousadia e menosprezo do Magistério pode ensinar o oposto, senão também, para qualquer pessoa sábia e prudente que, sem paixão e prejuízos, saiba valorar o peso ingente dessa unanimidade humana. Esse fato é mais que suficiente, repito, para já não se por em discussão a licitude e a legalidade onde esteja instituída a pena de morte.

Vamos, com tudo isso, expor, ex abundantia, as principais razões que abonam essa sanção extrema.

Razão fundamental: Restauração da Ordem Jurídica Violada.

Deus criou o universo em seu duplo aspecto: Mundo físico e mundo moral, dotando ambos de sua leis respectiva, que em sua própria natureza se manifestam, e que em seu conjunto representam a lei universal da ordem necessária para a conservação da natureza.

O pecado e o delito são transgressões dessa ordem universal que rege o mundo moral. O pecado, como ato puramente interno, não faz o nosso objeto, porém sim, o delito, enquanto é violação externa e moralmente imputável da ordem social.

Muito se discutiu acerca da finalidade da pena e do direito de castigar. Já entre os gregos foi objeto de discurso e motivação da pena, se havia de ser puramente expiatória do delito ou correcional.89

A doutrina que parece seguríssima, e ao abrigo de toda objeção séria, é a que vem sendo comum entre os grandes teólogos e juristas das mais diversas escolas e que o gênio filosófico do grande, incomensurável Amor Ruibal expõe luminosamente refutando ao mesmo tempo outras teorias divergentes, com seu habitual rigor dialético.90

Em geral todos os penalistas reconhecem que o direito de castigar se deriva do direito de legislar, posto que o fim da autoridade legisladora é realizar o direito, de que deriva o fundamento da pena. "Desta sorte as sanções da lei têm seu fundamento na ordem que devem garantir e manter em equilíbrio."9¹

Como a missão das leis é o estabelecimento e manutenção da ordem social, quando a lei é violada e a ordem rompida é necessário que se satisfaça na lei esta razão de sua existência, mediante a pena, que para este fim se haja assinalado. Deste modo a pena vem também a cumprir "os fins complementares de defesa da lei, de exemplaridade e de correção em seu caso... A finalidade da pena é a restauração da ordem rompida e restauração jurídica".92 No Direito Penal denomina esse fim primordial da pena: Reabilitação do direito e reafirmação do mesmo. "Esta reabilitação, diz, constitui utilidade suprema para o bem comum que o direito representa", não sendo assim necessário que com a pena se intente diretamente utilidade alguma de sua realização. "É uma profunda verdade psicológica e jurídica que o delinqüente é merecedor da pena, antes que se pense em tirar desta algum proveito quer para o delinqüente quer para os demais."9³

Tão clara se manifesta à razão humana e aos povos a justiça do castigo infligido aos grandes malfeitores que o ilustre jurista, também ele, abolicionista C.J.A. Mittermaier, anotador do famoso penalista Feuerbach, não se recata de fazer a seguinte confissão: "Ainda que recentemente (1840) tem sido ardorosamente impugnada a pena de morte, os abolicionistas não lograram que dita pena fosse considerada ilegítima nem pelos legisladores, nem tão pouco pelos sábios."94

Já dissemos que a doutrina da restauração da ordem jurídica é o efeito da sanção legal, inerente ineludivelmente à lei, para garantir-lhe a eficácia. Rossi dizia que, sendo o delito uma infração ou violação da harmonia do mundo moral, a pena tinha por fim o restabelecimento dessa harmonia, parcialmente destruída pelo delinqüente. Para Cathrein o castigo infligido ao malfeitor "é uma espécie de reação da ordem jurídica contra a infração do direito".95 Sto. Tomás justifica assim a pena capital: "O homem, ao delinqüir, separa-se da ordem da razão e por isso decai em sua dignidade humana, que assenta em ser o homem naturalmente livre e existente por si mesmo, e se submerge de certo modo na escravidão das bestas, de modo que pode dispor-se dele para utilidade dos demais... Por conseguinte, ainda que matar o homem que conserva sua dignidade seja em si mau, sem embargo, matar o homem delinqüente pode ser tão bom como matar uma besta, pois "pior é o homem mau que uma besta, e causa mais dano", no dizer de Aristóteles.96

Essa reparação da ordem violada e restauração jurídica leva-se a cabo pela expiação que repara a desordem que o delito ocasionou.

Nem se diga, com faz Vernet,97 que a reparação, quando se trata de homicídio, é impossível pois com a morte do assassino não se restitui a vida ao outro. É evidente que a ação lesiva da ordem, uma vez realizada, não pode dar-se por não feita. Mas seria desconhecer a natureza dessa ordem se quiséssemos concluir, por essa impossibilidade, que não é possível restabelecer a ordem violada. Não se reparam os efeitos da desordem, mas a ordem que a desordem violou.

Com efeito, a ordem vital humana que se violou no homicídio não é nenhuma magnitude quantitativa e ponderável que com outro peso igual se deva restaurar, senão que, como todo direito, é algo ideal, e se o assassino premeditadamente elimina a vida de outro homem, nega com seu ato o valor absoluto dessa vida, de que dispôs até sua aniquilação. Este fato requer certamente reparação; exige que de novo seja reconhecido o valor absoluto da vida negado pelo homicida. O extermínio da vida, daquele que por sua ação negou o valor que a vida humana tem na sociedade e para a sociedade, mantém o sentido de reconhecimento deste valor absoluto e pelo mesmo fato, desde o momento em que o assassino nega o absoluto respeito à vida humana, renuncia também a seu direito à vida.98

Assim pois, a morte do malfeitor no patíbulo não restitui a vida ao outro, porém, como expiação, converte-a em verdadeira pena jurídica, repara a desordem causada "e realiza a compensação do delito com um fato contrário: o sofrimento".99

Devemos notar que todos os raciocínios anteriores só têm sentido partindo da verdade da manifestação do direito eterno na ordem social presente na qual exerce a soberania. "Para o materialista, para o ateu que não admite essa lei divino-natural, nem a imortalidade, a pena capital, aniquilação absoluta do sujeito, não passa de um ato abominável e bárbaro."¹00

A infração grave da ordem social, a vista do assassinato de um inocente excita em todos a animadversão contra o culpável: "Que crueldade! que infâmia! "exclama o homem honrado. "Caia sobre esse malvado a espada da lei!" Este é o comum sentir do pessoal de bem. Sem embargo, a este conceito notável e cristão da justiça opõe-se o abolicionismo, com um sentido humanitarista ou filantrópico que, segundo as severas palavras de Balmes, se reduz "a uma crueldade refinada, a uma injustiça que indigna". Pensa-se no bem do culpável, e esquece-se de seu delito; favorece-se o criminoso e posterga-se a vítima. A moral, a justiça, a amizade, a humanidade não merecem reparação; todos os cuidados é preciso concentrá-los sobre o criminoso; para a moral, a justiça, a vítima, para tudo mais sagrado e interessante que há sobre a terra, só esquecimento. Para o crime, para o mais repugnante que imaginares possa, só compaixão. Contra semelhante doutrina protesta a razão, protesta a moral, protesta o coração, protesta o sentido comum, protestam as leis e costumes de todos os povos, protesta em massa o gênero humano. "Jamais se deixaram de olhar os castigos como expiações."¹0¹

Só em caso estritamente necessário e com cautela se há de usar esta pena. É para todos evidente que a pena está encaminhada a manter efetiva a ordem social quando esta é violada. Por esta razão devemos afirmar também que o conceito da pena há de guardar íntima relação, não só com o direito, como também com a necessidade; ou, tão só se justifica pela necessidade de conservar a ordem social e se infligida com justiça absoluta e com extrema moderação.

Puig Peña, assumindo o pensamento de Cuello Calón, do P. Montes e de outros notáveis penalistas, mostra que a necessidade é o que propriamente justifica, desde um plano político-penal, a aplicação da pena de morte. "A necessidade, com efeito, fundamenta a pena capital, pois é indiscutível que sem ela se multiplicariam os crimes ferozes, chegar-se-ia à desorganização política e social de alguns povos e, em definitivo, iria cada vez mais aumentando o número de malfeitores com o grande perigo para a sociedade que isso representa."¹0²

Sobre a necessidade de infligir o último suplício um penalista formula o seguinte dilema: É legítima a pena de morte? É necessária? Essas duas questões resolvem-se numa só: Sem necessidade, tal pena não seria legítima, e, se é necessária, sua legitimidade é incontestável.¹0³

Também Mittermaier em suas anotações a Feuerbach sustenta que o direito de castigar se baseia no princípio de que "o poder público tem direito de usar todos os meios conducentes ao fim do Estado sob a condição de que realmente esses meios sejam necessários".¹04

Nem outro é o pensar de João de Lugo quando de modo categórico afirma a licitude da pena capital: "A razão dessa licitude é clara, porque não se pode ser ilícito aquilo que é absolutamente necessário para a vida social e pacífica dos homens, como é a execução dos malfeitores."¹05 O teólogo bávaro Sporer transcreve íntegra e literalmente o parágrafo de Lugo porém sem citá-lo.¹06

Dizíamos que a necessidade é o que em cada caso justifica a aplicação das penas. Como o poder não é em si, moralmente bom nem mal, "recebe sua qualificação ética ao usá-lo a serviço da justiça".¹07 A Pilatos, como a todos os governantes legítimos, foi dado do alto o poder. Se ele, uma vez que estava convencido da inocência de Jesus, houvesse feito prevalecer a justiça, libertando-o de seus inimigos, dignificaria e enobreceria o poder; porém, sucumbindo, covarde, às ameaças e às falsas acusações e condenando-o ao suplício, amesquinhou o poder recebido.

Aplicar a pena última sem verdadeira necessidade, precipitada e indiscriminadamente, pior ainda, a dissidentes políticos, como na Rússia, em Cuba etc., é algo abominável. O Estado há de velar sem dúvida por que todos se sintam amparados em seus direitos, por que impere a razão e a justiça sobre a força bruta, por que os membros mais débeis da sociedade, as crianças, as mulheres, os pobrezinhos tenham seus direitos tão amparados como o mais poderoso, o mais influente político. Isto sim, é necessário, e para isto há de servir a lei penal bem aplicada.




89 Cfr. Werner Jaeger, Paideia: Los Ideales de la Cultura Griga, Méjico, 1957, p. 522.
90 Angel Amor Ruibal, em três ocasiões diferentes, tratou da fundamentação filosófica do direito: E 1912 publica um Estudio sobre los princípios fundamentales del derecho penal canónico, que ocupa as 135 primeiras páginas de seu comentário ao Decreto Máxima Cura, Santiago, 1912; em 1914 dá começo à sua obra magna. Los problemas fundamental de la Filosofia y del Dogma, em cujo tomo III estuda em sendos capítulos todo o concernente à essência do Direito Natural; e finalmente em 1918 sai à luz seu Derecho Penal de la Iglesia Católica, submetendo, nos primeiros capítulos, a rigoroso exame, as diversas teorias sobre a natureza do Direito Penal e os fins da pena. Para os que se hajam aproximado de algum de seus livros, folga todo comentário sobre a extrema agudeza e a penetração de suas análises. Nos últimos séculos, não o iguala pensador algum em profundidade, nem como gênio criador, que, com penetrante rigor, submete a exame quase toda a Filosofia e traça as linhas básicas em que há de assentar-se e discorrer todo o pensar filosófico no futuro.
93 Amor, Derecho Penal, vol. I, p. 36 e 43-44.
91 Amor Ruibal, Der. Penal etc., I, 43.
92 Amor Ruibal, Estudios etc., p. 49 e 43.
94 A. Ritter von Feuerbach, Lehrbuch des Peinlichen Rechts, 13ª ed. - Gressen, 1840, p. 216, Anmerkung de Mittermaier.
95 Victor Cathrein, Principios fundamentales del Derecho Penal, Barcelona, 191111, p. 204.
96 Sto. Tomás, Suma Teol., 2.8 2.ae., q, 64, a. 3.
97 Joseph Vernet, Peine Capitale Peine Perdue, in Études CCCXV (1962), 201.
98 Cfr. W. Bertrams, Die Todesstrafe, in Stimmen der Zeit, 165 (1959-1960) 290-293.
99 Cfr. Constante Amor y Naveiro, Examen critico de las nuevas escuelas de Derecho Penal, Madrid, 1890, p. 17.
100 Walte, Naturrecht und Politik, p. 421, ap. Joh. Ev. Pruner, Katholische Moral Theologie, 3ª ed., Friburgo, 1902, I, 531.
101 Balmes, Etica, cap. XVII, n. 228, (Obras ed. da BAC, III, p. 184).
102 Federico Puig Peña, Derecho Penal, 4ª ed., Madrid, 1955, II, 352.
103 Cfr. Carlos F. Marques Perdigão, Manual do Código Penal Brasileiro, Rio de Janeiro, 1882, p. XI.
104 A.R. von Feuerbach. op. cit., p. 42, Anm. des Herausg.
105 Joannis de Lugo, De Justitia et jure, Desp. X, sec. II, nº 58, na Ed. novíssima de Lyon, 1652, I, 250.
Quero chamar a atenção sobre o valor singular que têm, para nosso objeto, e em qualquer outro problema jurídico-moral, as opiniões daquele gênio desbravador e agudíssimo que foi Lugo. O príncipe dos moralistas Sto. Afonso Maria de Lig´rio diz que "sem temor se pode afirmar que, depois de Sto. Tomás, Lugo é o príncipe dos teólogos" e tinha tão alto conceito de sua sabedoria e prudência que chegou a dizer: "Basta que ele só sustente uma opinião moral para fazê-la provável, ainda que todos os demais sustentem o contrário". S. Alf. de Ligorio, Theol. Mor., Lib. III, tr. V, nº 552. Na edição crítica de L. Gaudé, Roma, Typ. Vat., 1907, II, 56. Outro grande teólogo, Augn Lehmkuhl, diz de Lugo, Ingenio acerrimus, que "ainda hoje, nenhum teólogo pode prescindir de suas obras". Theol. Mor., 10ª ed., Frigurgo, Herder, 1902, II, 835.
106 Pat. Sporer, op. cit., p. 103.
107 A. Süsterhenn, in Maurach e outros, Die Frage der Todesstrafe. Zwölf Antworten, Munich, 1962, p. 121.

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