h) A pena de morte constitui uma infração da lei divina "não matarás", mesmo quando aplicada com fins da justiça.¹9¹
A esta objeção respondo com o relato da seguinte anedota.
Em um debate sobre a pena de morte, na televisão de São Paulo, o Ministro Nelson Hungria, autor principal do vigente Código Penal brasileiro (na época) e de um extenso comentário sobre o mesmo, dirigiu-me estas palavras: "O Sr., defendendo a licitude da pena capital, está em contradição com o mandamento divino. Moisés, o grande legislador Moisés, prescreveu, por ordem de Deus, categórico "não matarás" e o Sr. propugna que é legítimo matar nossos semelhantes". Respondi-lhe: Por que V. Exa., Senhor Ministro, se detém só nesse versículo do Êxodo e não leva em consideração o que se diz no resto dos livros sagrados? Se V. Exa. os lesse, veria como o mesmo grande hagiógrafo, que foi Moisés, comina em várias passagens a pena de morte para diversos delitos. Quanto ao homicídio, o declara explicitamente no Gênese: "Todo aquele que derramar o sangue humano terá o seu derramado pela mão do homem." Esta sentença repetiu-a o próprio Jesus Cristo no Sermão da Montanha, fazendo-a sua. Observe, Senhor Ministro, como o próprio hagiógrafo nos dá a razão fundamental da proibição do homicídio, recordando que o homem é viva imagem de Deus, inteligente, livre e destinado por sua inefável Providência, para ter parte na felicidade de que goza o mesmo Deus. O Ministro concordou e manifestou satisfação pela resposta.
Como são muitos os que tropeçam no significado equívoco do vocábulo "matar", que no Êxodo quer dizer simplesmente assassinar, transcrevo aqui o esclarecimento que dos sentidos dessa palavra nos dá o exímio Suárez.¹92 "O fato de matar um homem nem sempre é homicídio, que a lei natural proíbe, senão que o é unicamente quando se realiza por conta própria, e, diretamente, ou seja, de propósito ou tomando a iniciativa. Não é homicídio, em troca, quando se mata em legítima autoridade ou em defesa própria." Já Santo Agostinho havia desfeito o equívoco em A Cidade de Deus.
i) A pena de morte é contrária ao Sermão da Montanha. Nele Jesus disse: "Amai vossos inimigos e orai pelos que os perseguem. Perdoai e sereis perdoados."
No mesmo debate da televisão, O Ministro Nelson Hungria, a certa altura, disse, com ênfase: "Eu sou mais evangélico que o Padre Silva, pois Jesus nos ordena amar e perdoar nossos inimigos e para o Pe. Silva nada de perdão. Matar quem como dolo mata."
Senhor Ministro, respondi-lhe: "V. Exa., que é jurista esclarecido e algo Magistrado, não pode ignorar que há duas ordens da vida em sociedade, a ordem da caridade que concerne a todos os homens e a ordem da justiça que incumbe tão-só à autoridade pública e que ela exerce através do poder judiciário. É de toda evidência, pelo texto e contexto daquelas expressões, que por elas Jesus se dirigia a todas as pessoas humanas e aos que administram a justiça em toda sociedade humana.
O juiz que conhece a causa de um crime e pronuncia uma sentença condenatória do réu, não está julgando um inimigo pessoal - inclusive se o réu fosse parente ou inimigo manifesto do juiz, este é declarado incompetente no casa - senão um malfeitor que violou os sagrados direitos de um cidadão, direitos cuja defesa e tutela incumbe como obrigação à autoridade pública.
Imaginemos, Senhor Ministro, que algumas pessoas vão ao seu tribunal questionar sobre graves maltratos e despojos de que foram vítimas, Qual seria a atitude de V. Exa. em tal caso? Ousaria porventura dizer-lhe: "Senhores, nada tenho a fazer com vossas queixas. Eu sou católico e evangélico e por isso perdôo todos os que os maltrataram e roubaram?" (Risos na platéia). "Senhor Ministro, replicariam eles, os maltratados e roubados fomos nós, não Vossa Excelência, e corremos à justiça para que nos ampare nossos direitos com uma justa reparação de agravos e para que nos devolvam os bens de que fomos despojados."
Claro que os querelantes tomariam sua atitude como um intolerável sarcasmo.
Tanto nisto do perdão, como no que diz respeito à não resistência ao injusto agressor, é necessário distingüir sempre o que concerne ao indivíduo e seus direitos, do concernente ao que representa ou tem a seu cargo a tutela dos outros. Diz muito bem um escritor atual: "Uma pessoa, só, está em seu direito se aceita a não resistência ao agressor, porém desde que tem a seu cargo uma família, uma comunidade, uma nação, seria imoral sacrificá-los ao inimigo."¹93 E o mesmo diga-se do perdão. Bem fez Santa Rita de Cássia perdoando o assassinato de seu marido, e lhe foi computado como mérito, por´tem mal haveria feito a justiça se deixasse impune o nefando crime.
"A vítima de uma injustiça, dizia o grande Pontífice Pio XII, pode livremente renunciar à reparação; mas a justiça, por sua parte, assegura-lhe em todos os casos."¹94
192 Francisco Suárez, De legibus, L. II, XVI, t. (na ed. do Corpus Hispanorum de Pace, C.S.I.6., XIV, 83).
193 Thomás Molnar, El pacifismo y la Paz, in Verbo, Madrid, 221, 1984, 48.
194 Discurso a los participantes en el VI Cong. Int. de Der. Penal, 3-X-53 in Docum. Políticos, BAC, p. 414.
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