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sábado, 29 de outubro de 2011

A. A. V. R.


OLAVO DE CARVALHO
Tenho sugerido, para eliminar a polêmica em torno do aborto e satisfazer os instintos humanitários dos adeptos dessa prática, uma solução fácil e rápida que denomino Auto-Aborto Voluntário Retroativo (A. A. V. R.). Inspira-se no exemplo de um francês, deficiente físico, que processou seus pais por não o haverem abortado. Processou e ganhou. Ora, se um erro pode ser punido, com muito mais razão deve poder ser corrigido. Cada amante do aborto, portanto, pode alcançar a plena satisfação de suas reivindicações esmagando o próprio crânio a fórceps ou por meio de qualquer outro instrumento obstétrico apropriado e solicitando, antes ou depois desse ato cirúrgico, a anulação do seu registro civil de nascimento. Consumada a sua total erradicação do mundo físico e histórico, o distinto ainda teria a satisfação de poder ingressar na esfera do além portando um curriculum mortis idêntico àquele de milhões de bebês que, antes dele, exerceram o direito inalienável de ser abortados.

Observo, de passagem, que, se a apologia do abortismo é feita em nome da liberdade da mulher dispor do seu próprio corpo, a sentença acima referida mostrou que para os próprios abortistas essa liberdade não existe de maneira alguma, já que negam a cada mãe o direito dar prosseguimento a uma gravidez que seu filhinho, no futuro, possa vir a julgar indesejável. O A. A. V. R. protegerá os abortistas contra esse tipo de encrencas lógicas modelo exterminador-do-futuro, retirando-os deste baixo mundo antes que alguém se dê conta de que são completamente loucos.
***
Conforme se viu na Folha de S. Paulo do dia 12, até o sr. Luiz Werneck Vianna, que só não é ainda mais comunista do que é porque já preencheu com a substância gasosa do marxismo o vácuo inteiro do seu ser, admite que não sou porta-voz de nenhum interesse de classe. Esse reconhecimento é ainda mais confiável porque, na boca dele, não é elogio: é vitupério. Tanto que vem seguido da conclusão de que, por isso mesmo, não sou um intelectual. A única função dos intelectuais, na cartilha gramsciana seguida pelo sr. Werneck, é fazer propaganda pró ou contra os interesses burgueses. Como não faço nada disso, estou fora.

A teoria marxista da “ideologia de classe” não tem pé nem cabeça. Ou a ideologia do sujeito traduz necessariamente os interesses da classe a que ele pertence, ou ele está livre para tornar-se advogado de alguma outra classe. Na primeira hipótese, jamais surgiria um comunista entre os burgeses e Karl Marx jamais teria sido Karl Marx. Na segunda, não há vínculo entre a ideologia e a condição social do indivíduo e não há portanto ideologia de classe: há apenas a ideologia pessoal que cada um atribui à classe com que simpatiza, construindo depois, por mera inversão dessa fantasia, a suposta ideologia da classe adversária.

Uma teoria que pode ser demolida em sete linhas não vale cinco, mas com base nela já se matou tanta gente, já se destruiu tanto patrimônio da humanidade e sobretudo já se gastou tanto dinheiro em subsídios universitários, que é preciso continuar a fingir que se acredita nela, para não admitir o vexame.

Tal é a profissão do sr. Werneck, que acredita por isso ser um “intelectual”. Naturalmente ele sabe que, no vocabulário gramsciano, qualquer prestadora de serviços eróticos que suba num caixote para discursar contra o baixo preço do michê já é, ipso facto, uma intelectual. Ele sabe que as coisas são assim, mas também sabe que as pessoas em geral não conhecem essa acepção do termo e o usam, ao contrário, para designar algo que lhes parece lindamente aristocrático.

Portanto ele sabe que, ao negar-me a condição de intelectual no primeiro sentido -- o que é perfeitamente justo --, soa como se me negasse as lindezas aristocráticas das quais apreciaria que a platéia o julgasse portador.

A forma mentis dos intelectuais ativistas é toda feita desses jogos de duplo sentido, que as fofoqueiras de arrabalde dominam tão bem mas em cujas complexidades eles às vezes se enroscam ao ponto de colar na própria testa o rótulo pejorativo que desejariam estampar na do inimigo.

Fonte: Olavo de Carvalho, filósofo, Zero Hora, 19 de marcos de 2006

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